Esse texto eu acho muito interessante a respeito da vanguarda dos anos 60 nos Estados Unidos. Esse texto foi escrito pela professora e artista Dora Longo Bahia.
Objeto a ser destruído.
No inicio dos anos 60 a chamada neo-vanguarda, composta por artistas como Robert Morris, Carl Andre, Eva Hesse, Richard Serra, Mel Bochner e Robert Smithson, começou a formular uma teoria e prática de arte que concentrava-se menos na execução de um objeto que fosse formalmente pertinente e terminado do que numa arte que revelasse os processos de sua execução ou “inexecução”. A partir de então, a fotografia adquire um papel constitutivo enquanto documento de um evento ou de uma experiência de arte. Essa documentação ou proposta funcionava ela própria como objeto de arte. Tanto a noção de reportagem como a de obra de arte sofreram mudanças bruscas. O conceito de reportagem tradicional alterou-se, movendo-se do campo social para o privado – pequenas platéias – e do caso capturado para a encenação ou pose. O status da obra de arte, o espaço em que ela se encontra, sua durabilidade sua posse e suas relações institucionais passaram a ser violentamente criticados pelos artistas no decorrer dos anos 60 e 70.
Gordon Matta-Clark faz parte da segunda geração de artistas que exploraram essas questões. Matta-Clark morreu em agosto de 1978, aos 35 anos, deixando uma obra relativamente pequena quanto a objetos escultóricos mas extremamente rica quanto a problemas de arte contemporânea. Formado em arquitetura e filho do artista surrealista Roberto Matta, assistente de Le Corbusier no começo de carreira, Gordon Matta-Clarck explora questões que rompem limites entre arquitetura e escultura, ironiza o espaço da casa tradicionalmente visto como privacidade, segurança, espaço absoluto e questiona vigorosamente a existência da obra de arte enquanto objeto.
Apesar de raramente ter encontrado o pai, podemos identificar influencias das teorias arquitetônicas de Roberto Matta na obra do filho. Após sua conversão ao movimento surrealista, Matta rejeita o antropomorfismo raciocinado de Le Corbusier. Seu artigo Mathématic Sensible – Architecture Du Temps propõe a inviabilidade de uma arquitetura com desenhos lineares e regulares contrariando a noção de Mathématic Raisonable de Le Corbusier, cuja base era de que as “forças transcendentes da geometria devem prevalecer”. A arquitetura de Matta invoca as vicissitudes pegajosas do corpo humano (um análogo surrealista das contingências psíquicas do inconsciente). Sua arquitetura era motivada por uma sujeito decididamente não racionalizado, maleável, mutante, em oposição à arquitetura antropomórfica de Le Corbusier, cuja forma era idealizada a partir do homem modular- matemático, racional, vertical, proporcional. Apesar de se assemelhar ao pai em relação a proximidade da arquitetura com a arte e à critica ao programa arquitetônico modernista, Matta-Clarck não centra suas investigações artísticas no espaço de interioridade da arquitetura. Suas obras são uma reflexão sobra a temporalidade do ambiente construído, uma reinterpretação concreta da teoria de seu pai de uma “arquitetura do tempo”.
Nas investigações colaborativas do grupo Anarchitecture, Matta-Clarck discute o intermediario, o transitorio, o transposicional na prática arquitetônica. O grupo se reunia, durante o ano de 1973, com a finalidade de discutir o caráter ambíguo de espaço. Pretendia investigar a idéia de lugares fora da arquitetura, sem arquitetura ou extra-arquitetônicos. Matta Clarck referia-se a esses lugares de colapso ou remoção como interrupções. Um lugar que é uma “interrupção” é um espaço liminar livre das restrições de um imóvel real. Uma sobra de espaço ilegível, ambígua e até mesmo cinética que, por não ser legislado para o uso, recusa qualquer direito de posse. O pensamento do grupo materializou-se numa exposição em 1974, por meio de fotografias apropriadas de lugares de difícil demarcação e legislação como, por exemplo, buracos, linhas do horizonte, monumentos caídos.
Essas propostas assim como a série de trabalhos Fake Estates são investigações sobre edificação, propriedade e posse. Em Fake Estates, Matta-Clarck adquire pequenos lotes inacessíveis entre propriedades em condomínios, propondo algo que pode ser possuído sem nunca ser realmente experimentado. Essas mini-propriedades eram restos das grades elaboradas por arquitetos e urbanistas, a fim de racionalizar o espaço a ser construído. A obra só seria experimentada mediante sua documentação - fotografias ou plantas dos loteamentos – confundindo-se com ela. Matta-Clark ironiza, assim, as noções de propriedade e posse.
Outra influencia na obra de Gordo Matta-Clark foramas teorias sobre entropia e Site Non-Site de Robert Smithson. Matta Clark encontrou Smithson em 1969, quando cursava a Cornell´s School of Architecture.
A primeira teoria de Smithson importante para o entendimento da obra de Matta-Clark é a formulação peculiar de arte processual advinda de suas leituras sobre entropia. Segundo uma definição do Merriam Webster´s Collegiate Dictonariy, a entropia pode ser entendida generiacamentecomo o grau de desordem ou incerteza de um sistema, ou ainda como caos, desorganização, acaso. Smithson estava preocupado tanto com a progressiva desintegração da forma quanto com a irreversibilidade de determinadas situações que tendem naturalmente para o caos. Enfatizando objetos que aparentemente configuravam uma “historia inativa” ou um “dreno de energia”, Smithson considerava que a arte recente incorporava uma “redução sistemática de tempo”, enquanto o “valor da noção da ação em arte” era progressivamente aniquilidado. Disso resultavam obras que revelavam a própria deterioração temporal ou “desevoluçao”, neutralizando o “mito do progresso”.
A teoria de Smithson pode ser aplicada a muitos trabalhos de Matta-Clark: desde seus primeiros trabalhos envolvendo processos de cozimentoaté seus cortes em edificios prestes a serem destruídos. Matta-Clark referia-se a essa atividade, os cortes em edifícios, como “inconstrução”. A noção de obra terminada, completa, total é substituída pela idéia de arte como pratica ou uso. Em prédios condenados à demolição, o artista realizava cortes estruturais desfuncionalizando espaços antes habitáveis e desequilibrando a percepção tradicional deles. O fato de que o objeto se constitui-se no momento da destruição do prédio assemelha-se a alguns projetos de Smithson como, por exemplo, Partially Ruined Bloodshed. A simultaneidade do auto apagamento do trabalho e de sua aparição sugere o nascimento advindo da ruína, usando uma terminologia de Smithson. Entretanto, a escolha em trabalhar com o ambiente urbano em geral e suas estruturas sociais diferenciam os trabalhos de Matta-Clark dos demais earth works de seus contemporâneos. O artista pretendia fazer uma critica à reurbanização da cidade ( os loteamentos do Soho em Nova Iorque, a construção do Centre Georges Pompidou em Paris). Segundo suas palavras: “ Ao desfazer um prédio, abro um estado de cerco pré condicionado por uma necessidade física e por uma industria que cria um desperdício de caixas urbanas e suburbanas como um contexto de garantir um consumidor passivo e isolado- uma audiência virtualmente cativa”.
A segunda das formulações de Smithson importante para a leitura da obra de Matta-Clark é a que versa sobre a relaçao Site Non-site. Segundo Smithson essa relação constitui-se de um dialogo entre o trabalho feito ao ar livre e seu deslocamento para dentro, emoldurado, pelo espaço da galeria, por meio de fotografias, mapas e espécimes geológicos recolhidos do lugar. Ambas as situações estão presentes e ausentes ao mesmo tempo e a experiência de arte está na relação entre elas.
No trabalho de Matta-Clark, a relação Site non-site proposta por Smithson é radicalizada devido à pouca durabilidade e conseqüente impossibilidade de experimentação da obra situada. Todos os prédios que sofreram intervenções de Matta-Clark foram em seguida destruídos. Os sites de Matta-Clark não mais existem. Sua permanência foi curta restringindo-se na maioria dos casos a poucas visitas guiadas antes da destruição dos prédios. Alguns deslocamentos partes das casas, assim como a documentação fotográfica e cinematográfica dos cortes podem ser vistos em galerias e museus. A fotografia torna-se portanto, vital para o conhecimento da obra do artista.
Porém, assim como a noção de Site Non-site consiste em uma relação paradoxal de presença e ausência, a fotografia para Matta-Clark é um “documento não-documento”, isto é, apesar de ser, junto com os filmes, a única forma de acesso às intervenções do artista velam as informações e confundem o observador. Matta-Clark propõe a idéia de que o processosagrado do enquadramento fotográfico também possa ser “violentável”, invertendo o sentido da fotografia documental tradicional. As fotografias de seus projetos funcionam como documentos enquanto gravam lugares específicos e efêmeros para a posterioridade. Simultaneamente rejeitam, entretanto, uma das principais características do gênero: a aspiração a comunicar eventos históricos ou coisas via a pretensa transparência do meio. Suas imagens precisam ser estudadas intensamente ou em series para possibilitar a extração de qualquer informação a respeito delas. Apesar de sua abordagem documental direta, elas descrevem os limites de seu próprio formato enquanto questionam a transparência do espaço que representam.
Aliando o pensamento a respeito do Site condicionado à sua ausência com a natureza entrópica das investigações do artista, pode-se concluir que o trabalho de Matta-Clark tanto pressupõe sua própria destruição quanto a falência do ideal humano de ordem. Ao atacar a arquitetura, Matta-Clark está agredindo a estabilidade social. A violência contra a arquitetura é na verdade uma violência contra o homem, ou seja, contra o projeto humano de transformação da natureza. Todo monumento arquitetônico é um monumento à ordem social, uma convocação emitida para impor medo. A obra de Matta-Clark internaliza a perda da estabilidade histórica própria dos monumentos tornando-se um monumento às pretensões do monumento e tornando-se, ela própria, deslocada neste processo. Ela radicaliza o monumento entrópico tornando-se, segundo terminologia do artista, um non-monumento. A ruína iminente do objeto artístico é a essência constitutiva do mesmo. A obra de arte existe enquanto um intervalo suspenso entre sua presença e ausência. O acesso a ela só é possibilitado por meio de uma documentação não documental que é, ela própria, a obra de arte sem o ser.
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